quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
"Jogos digitais e aprendizagens em história: jogar Age of Empires III no contexto das estratégias interativas e suas relações com os modos e maneiras de pensar historicamente"
Resumo:
Esta pesquisa situa-se, em um campo de trabalho não só pouco explorado
como também permeado por alguns "pré" conceitos da academia: os
videogames (games de computador) e suas relações com a aprendizagem da
História. Minhas observações cotidianas corroboradas por alguns autores
nos levam a pensar que os jovens com acesso às diferentes mídias
digitais criam novas relações com os saberes, novas maneiras de
interpretar o mundo e, por que não, novas formas de aprendizagem e de
construção do saber histórico. O objetivo geral deste estudo foi o de
identificar e analisar os processos de aprendizagens de jovens entre 14 e
18 anos, proporcionados pelos jogos, que dizem respeito aos modos e
maneiras de pensar historicamente, construídos a partir das estratégias
interativas construídas por sujeitos que jogam jogos digitais com
temática em história, especificamente o jogo Age of Empires III. Esta
pesquisa contou com um caráter essencialmente etnográfico, face à minha
imersão por mais de dois anos no ambiente online do jogo Age of Empires
III, e contou com o paradigma indiciário para compreender o problema
de pesquisa proposto. Dentre os principais resultados deste trabalho,
destaco: Os jovens apreciam a interatividade e a formação de laços
sociais dentro e fora do jogo. A constituição de clãs, a organização em
torno do jogo, a criação de fóruns de discussão e a ampliação dos
diálogos travados entre eles para aspetos da vida cotidiana de cada um
demonstram que este jovem não deseja ficar sozinho frente ao computador,
mas constrói formas de socialização que, em alguns momentos,
prescindem das socializações presenciais clássicas; O contato com os
jogos digitais de história permitem ao jovem desenvolver estratégias de
aprendizagem (em geral) e estratégias de aprendizagens em história.
Compreender como este jovem aprende é um dos grandes desafios da escola,
pois suas estratégias formativas o circunscreve em uma nova
organização hierárquica, basedada nas aprendizagens em rede, abertas
(Himanen, 2001).
INTRODUÇÃO
Este
trabalho surgiu de algumas inquietações apresentadas em minha prática
docente, no entanto, a sua história começa com minha infância, visto
que eu sou um autêntico sujeito da geração do videogame. Jogo desde os
8 anos de idade e vivencio os impactos do videogame em nossa sociedade
desde então.
Conforme
afirmo em minha Dissertação de Mestrado (Arruda, 2004), vivemos a
primazia do trabalho e toda e qualquer atividade vinculada ao lazer ou
ao ócio é desvalorizada socialmente – apesar de De Masi (2001) dizer o
contrário, que nossa sociedade tem cada vez mais valorizado o chamado
ócio criativo, ou a capacidade de gerar valor a partir de atividades
historicamente relacionadas aos momentos de descanso humanos.
Acredito que a visão deste autor possui duas vertentes a serem consideradas: a primeira diz respeito a quem gera produtos e a segunda diz respeito a quem os consome. Os primeiros, apesar de lidarem com a oferta de ócio, na verdade gerenciam um negócio, ou seja, um não ócio,
com empresas organizadas em estruturas organizacionais marcadamente
capitalistas. Já os consumidores são responsáveis pelo giro comercial
destes produtos, no entanto, são levados a consumirem apenas nos
momentos em que o trabalho não se faz presente, geralmente quando os
intervalos legais são estabelecidos (férias e finais de semana, por
exemplo).
No
entanto, o videogame desconstrói esta idéia de lazer, pois o seu
consumo tem se tornado cada vez mais constante, a ponto dele ser cada
vez menos considerado um brinquedo e cada vez mais considerado um
elemento da cultura. Conforme nos indica Tavares (2006), o videogame é
arte, é entretenimento, vincula-se ao desenvolvimento tecnológico
contemporâneo, é também espaço de transformações em nossas relações, na
perspectiva da inovação social apontada por Hobsbawm (2001).
Atualmente muitos jovens passam mais tempo em frente a um jogo de computador ou console
de videogame do que no ambiente escolar (Prenski, 2001). Este fato,
por si só, já inscreve o jogo em um lugar de destaque nas experiências
da criança e do adolescente com a cultura tecnológica, ao passo que
insere a escola em um lugar cujas ações perderam, há algum tempo, sua
centralidade nos processos formativos das gerações nascidas pelo menos
nos últimos 30 anos, nos meios urbanos desenvolvidos.
A
História, ou a temática em História ganha espaço significativo nas
atuais produções de jogos digitais, sobretudo nos jogos de estratégia e
nos jogos “de tiro”1
Kee (2008). Apesar disso, ainda são poucos os trabalhos que tratam
deste problema no campo da historiografia ou do ensino da História.
Acredito que talvez pela incipiência do problema, ou pela fonte ainda
não ter sido devidamente validade e reconhecida nos domínios da pesquisa
histórica.
Esta
pesquisa situa-se, portanto, num campo de trabalho não só pouco
explorado como também permeado por alguns “pré” conceitos da academia:
os videogames (games de computador) e suas relações com a aprendizagem da História.
Nossas
observações cotidianas corroboradas por alguns autores nos levam a
pensar que os jovens com acesso às diferentes mídias digitais criam
novas relações com os saberes, novas maneiras de interpretar o mundo e,
por que não, novas formas de aprendizagem e de construção do saber
histórico. A mídia eletrônica e digital se apresenta como um avanço
tecnológico capaz de modificar nosso comportamento, com um discurso que
se materializa em novas condições de possibilidades, em novos espaços e
em novas formas que ele assume (GARBIN, 2003).
Não
só a Internet, mas a linguagem informática tem ultrapassado cada vez
mais as barreiras dos especialistas e alcançado um grande número de
pessoas. Em todos os espaços estão presentes as linguagens
computacionais: em supermercados, caixas eletrônicos, serviços de
atendimento ao cliente, lojas de entretenimento etc., ou seja,
percebe-se que o acesso a essas linguagens “digitais” tem sido cada vez
mais comum entre os sujeitos, o que gera mudanças culturais profundas.
E é nesse contexto que se afirma que está surgindo uma nova cultura
jovem, definida como padrões socialmente transmitidos e compartilhados
de comportamentos, costumes, atitudes e códigos tácitos, crenças e
valores, artes, conhecimento e formas sociais. (Tapscott, 1999, p 53, apud GARBIN, 2003: 129).
Nesse
sentido, os jogos digitais atuais, diferentes daqueles criados na
década de 1980, possuem linguagens informáticas que permitem não só uma
representação da realidade cada vez mais rica em detalhes como se
configuram em tecnologias que exigem níveis de elaborações mentais cada
vez mais complexos (PRENSKI, 2006).
Além da dimensão complexa da produção dos jogos - objeto de nossa apresentação -
chama a atenção a presença dos jogos no cotidiano das pessoas,
independente da idade. De acordo com dados recentes, desde 2002 a
indústria dos games vem superando o cinema, música e livros – o que a
coloca como principal referência no setor de entretenimento. Dados do
NPD Group mostram que, somente nos Estados Unidos, o mercado de games
saltou de US$ 12,7 bilhões em 2006 para mais de US$ 19 bilhões em 2008,
demonstrando um crescimento significativo no período. Dados sobre este
mercado no Brasil ainda são imprecisos, mas existem indicativos de
grande crescimento em setores como a Associação Brasileira das
Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos ABRAGAMES (ABRAGAMES, 2008): jogos
para celulares, jogos online (via internet), softwares para PC (Personal Computer / Computador
Pessoal) e videogames. Há se reforçar a existência de um grande
mercado ilegal (pirataria) no país, que reflete diretamente nos números
de vendas.
De
maneira geral, o que se percebe é a presença cada vez mais “marcante”
dos jogos nos lares, consolidando suas implicações culturais, sociais e
econômicas.
Outro
aspecto que precisa ser salientado diz respeito a quem joga: diversos
estudos têm demonstrado que não se trata de uma brincadeira de criança.
Dados dos Estados Unidose Inglaterra2
demonstram um aumento considerável ao longo dos últimos anos de
jogadores com idade entre 25 e 40 anos de idade. A idade destes adultos
tem um reflexo temporal próximo ao da explosão comercial dos videogames
(década de 1960), ou seja, as crianças que jogam videogames tendem a
manter este hábito quando entram na fase adulta.
De
acordo com Beck and Wade (2004), os videogames tornaram-se elementos
centrais da vida das pessoas, sobretudo nos Estados Unidos, Europa e
parte da Ásia. Os videogames possuem um papel importante na nova
geração de trabalhadores que, mesmo em fase adulta, continuam a
utilizar os videogames em seus momentos de lazer e também de trabalho.
Vários
estudos têm demonstrado as diferenças entre as produções midiáticas
baseadas no impresso com as produções hipermidiáticas. Uma das grandes
distinções reside na possibilidade do sujeito de acessar conteúdos e,
concomitantemente, produzir conteúdos em
uma mesma configuração midiática. Ou seja, vislumbramos nos ambientes
telemáticos espaços de autoria que permitem aos jovens produzir,
aprender ensinar.
È neste aspecto que vislumbramos a necessidade da escola integrar o discurso
hipermidiático, buscando entender o universo textual que lhe é próprio
e também participar ( quem participar ? reconstruir a idéia) como
agente de aprendizagem, de maneira a garantir o seu lugar em um mundo
cujo conhecimento e informação não são mais socializados pelos sujeitos
que, aparentemente, “detém saberes” mais elaborados do que outros que
se situam fora do espaço e tempo escolar.
Os
videogames, ao se tornarem referência cotidiana para os jovens,
tornam-se também referências de aprendizagem, no seu sentido atribuído
por Vygotsky (1998). A aprendizagem ocorre em todos os espaços fora da
escola e ela não se resume a pacotes de informações, mas misturam-se a
saberes científicos de toda a ordem. Talvez resida aí uma das grandes
dificuldades vivenciada por pais e professores – a velocidade com a
qual tais tecnologias incorporam-se às nossas vidas. Atualmente, mal
recebemos um conjunto de informações acerca de um novo aparelho de
videogame e outro já começa a ser anunciado, com características e
formas de usos distintos do anterior, reiniciando nosso processo de
aprendizagem “técnica” e tecnológicos acerca de tal mecanismo
cognitivo.
As
questões que muitas vezes são apresentadas por pais, professores e
“especialistas”, costumam limitar-se a aspectos supostamente
“negativos” das mídias digitais. A partir dessas preocupações, muitos
questionamentos passam a alardear os meios de comunicação e as
produções acadêmicas. Dentre eles destacamos: a mídia contemporânea, ao
privilegiar a cultura do espetáculo não estaria “prejudicando” a
formação de valores, saberes das novas gerações? Os games digitais, a
Internet e seus componentes, ao simular situações reais e criar mundos
fantasiosos não estariam representando um distanciamento do que
chamamos de “mundo real”? As mídias, de maneira geral, não privilegiam
ações de violência, terror e competição extremada, prejudicando as
sociabilidades?
Acredito
que na atual configuração tecnológica, ao invés de investirmos somente
em estudos para melhor compreender, confirmar ou não tais problemas
que supostamente estariam a afetar os processos de formação intelectual
e social das novas gerações, deveríamos também realizar estudos que
partissem da premissa de que os jovens vivenciam situações de
aprendizagem com níveis de complexidade cada vez maiores à medida que
informação e conhecimento ampliam seus espaços nas produções de mídias
digitais.
Há
de se salientar também que a integração hipermidiática dessa era
envolve cada vez mais situações de aprendizagem, ainda que haja
necessidade de análise da qualidade destas produções.
Considero
que as novas gerações, sobretudo aquelas nascidas a partir da década
de 1990, vivem imersas em formas de aprendizagem baseadas em
comunidades abertas, com níveis de hierarquias diferentes daquelas
observadas nas escolas. Ao invés de um modelo de aprendizagem baseado
na premissa de alunos “silenciosos” e ávidos por “devorar” o saber
transmitido pelos professores, observamos estruturas de hierarquias e
validação de conhecimentos baseados em contribuições dos sujeitos aos
grupos de discussão, às comunidades específicas, aos clãs3 de jogadores.
Ousaria
dizer que as novas gerações podem estar aprendendo mais a partir do
contato com os jogos digitais, como o fazem avidamente e sem perceber
que se trata de conhecimentos e habilidades complexos, na medida em que
tais elementos são transmitidos na forma do jogo.
Em nossa investigação pretendemos identificar e analisar os processos de aprendizagens
de jovens entre 14 e 18 anos, proporcionados pelos jogos, que dizem
respeito aos modos e maneiras de pensar historicamente, construídos a
partir das estratégias interativas construídas por sujeitos que jogam
jogos digitais com temática em história, especificamente o jogo Age of Empires III.
Nesse sentido, minha hipótese é de que os jovens jogadores de Age of Empires III (
jogo que será objeto de nossa investigação junto aos jovens), ao
apropriarem-se deste jogo, além de desenvolverem determinadas formas de
sociabilidade nos espaços de interatividade virtual e através de todos
os meios de comunicação disponíveis, podem também desenvolver
raciocínios históricos . A partir da imersão espaço-temporal no jogo,
as dinâmicas tecnológicas oferecidas pelo jogo possibilitam ao jogador
aprender sobre a natureza indeterminada e mutável das narrativas e
conceitos históricos, assim como favorece a construção imaginativa dos
acontecimentos por analogia.
Argumento
que, tendo em vista a natureza do problema a que nos propomos
investigar, necessitamos de diversos referenciais teóricos e
conceituais que lhe dêem sustentação, ou que nos ajudem a desenvolver
nossas análises. O que poderia ser uma “miscelânea” perigosa para a
análise do objeto, poderá ser de suma importância para o problema de
pesquisa que ora se configura.
Chama-me
a atenção a capacidade de fascínio dos jogos digitais e a maneira como
eles envolvem seus jogadores, fazendo com que, na construção de
comunidades, promovam a criação de diferentes espaços de aprendizagem
sobre os jogos, organizados de maneira distinta daquela compreendida
pelo modelo escolar.
Para
discutir os possíveis modelos de aprendizagem baseados nos jogos
digitais, vou utilizar em minha argumentação, os seguintes referenciais
teóricos: Himanen (2001) e a mentalidade Hacker, Johnson (2005) e a
inteligência aumentada por meio dos games, Pacheco (2004) e a formação
de comunidades de aprendizagem mediante Fóruns e similares; Moita
(2006) e a construção de currículos no jogo; Gee (2003) e o papel dos
videogames na formação escolar.
Os
autores citados salientam a emergência de novas estruturas cognitivas
de aprendizagem que passam ao largo da escola e, diferentemente da
história recente, correm sério risco de eliminar o papel da escola, no
processo de formação para a vida.
Desde
a invenção do rádio e do cinema, em fins do século XIX, e da TV, no
início do século XX, observa-se um aumento considerável da produção
massificadora da informação (no sentido de ser acessível a um número
cada vez mais amplo de espectadores).
Diferentemente
do século XIX, no qual se verifica a primazia do impresso sobre a
imagem, no século XX, a possibilidade de reprodução em níveis quase
infinitos das mídias e dos conteúdos propicia que um número cada vez
maior da população mundial tenha acesso aos bens culturais da
humanidade, em seus suportes hipermidiáticos.
O que antes era possível de ser evidenciado apenas em visitas in loco
aos espaços, ou mesmo nos manuais de professores e intelectuais, é
agora disponibilizado em mídias diversas, como: imagens de TV,
documentários, programas de rádio, propagandas em cinema etc.
Ao
contrário de modelo tradicional de aprendizagem – baseado em uma
perspectiva linear -, no qual os bens culturais ficam encerrados em
espaços físicos fechados a qualquer público, na perspectiva da
aprendizagem aberta, o conhecimento está vinculado aos sujeitos de
diversas formas e meios, por meio de sua disponibilização em espaços
públicos digitais, ainda que estes espaços estejam em processo de
ampliação do acesso. Ante as limitações tecnológicas da população
mundial, chamo a atenção para a concepção de distribuição dos produtos
culturais.
Vivemos,
hoje, a primazia da disponibilização dos produtos culturais e
científicos – desde a oferta gratuita das revistas acadêmicas, notícias
de jornais impressos, vídeos, músicas jogos online etc.
Conforme afirma Lastres (1999), experenciamos um momento em que a
informação e conhecimento alcançaram valor e poder incomensuráveis,
frente aos produtos físicos, materiais pertencentes ao período chamado
por ela de “Sociedade Industrial.
As
mídias contemporâneas representam, ainda, o uso de diferentes
linguagens (hipertexto, tv, vídeo, áudio, etc.) pelos sujeitos e
proporcionam transformações cognitivas, mudanças na forma de pensar e
relacionar saberes e raciocínios; ao considerar a complexidade, podem
promover a experiência singular, valorizando a estética e o subjetivo.
Essas
novas mídias, baseadas na imagem, não eliminam a importância do
impresso na sociedade, introduzem outras fontes na interpretação e na
compreensão do mundo. Para o historiador, talvez pareça ser um campo
confortável de discussão, uma vez que o século XX é marcado por
mudanças significativas na maneira como o documento histórico passa a
ser reconhecido. A ampliação das fontes históricas, com a respectiva
incorporação de materiais diversos e seu reconhecimento como objetos
necessários para a compreensão da história, possibilita-nos entender as
novas mídias como elementos fundamentais da cultura do século XX.
Ainda
assim, as novas mídias, ou aquelas baseadas na hipermídia e no
audiovisual, não são tão valorizadas como as fontes tradicionais, apesar
de as discussões terem se ampliado nos últimos anos. Morettin (2007,
p. 48), ao analisar a obra de Marc Ferro sobre o cinema, explica o
seguinte:
A
exclusão da imagem cinematográfica do fazer histórico, para Ferro,
ocorreria em função desta pertencer ao imaginário da sociedade que, por
sua vez, também não era considerada pelo historiador. A vinculação
entre cinema e imaginário é fundamental para o seu trabalho, é o seu
postulado: ’aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções, o
imaginário do homem, é tanto a História quanto a História
As
fontes cinematográficas, o computador e seus softwares e os jogos
digitais ganham hoje, o estatuto de novas fontes com os problemas
apresentados pelo autor. Trata-se de fontes sobre a História de uma
determinada época, mas que não são do tempo dos acontecimentos ali
retratados e tampouco possui o rigor exigido pelo historiador.
No
entanto apreende-se a emergência de estratégias de validação do
conhecimento produzido na rede baseadas não mais na hierarquia escolar,
mas em processo hierárquicos distintos de toda e qualquer
sistematização de conhecimento reconhecida até então.
Nas
comunidades de jogadores, a validação das informações, dos
conhecimentos transmitidos no ambiente do jogo, é legitimada pelos
pares de jogadores. Em geral, o reconhecimento do saber trazido pelo
jogador vincula-se ao seu tempo de experiência, à busca na rede, pelos
demais jogadores, de informações semelhantes, no intuito de localizar
possíveis plágios e a verosimilhança das informações dos jogadores em
contraste com informações publicadas em outras fontes (site do
desenvolvedor do jogo, por exemplo). Esse movimento foi, a todo o
momento, observado nos processos de publicação de notícias e informações
sobre o jogo e temáticas afins.
Acredito
que o processo de validação da informação e do conhecimento precisa
ser mais bem compreendido, assim como os processos cognitivos
discutidos anteriormente, visto que se traduzem maneiras e modos de
construção do raciocínio ainda não apreendidos no universo escolar.
Como pode ser percebido, à escola cabe um importante e difícil papel
social, dada a dinamicidade das transformações midiáticas atuais.
Ainda
que a academia questione essas formas de validação, não é possível
desconsiderar que tal fenômeno possua ligação direta à forma de
disponibilidade do conhecimento contemporâneo e a sua distribuição
através da internet – Rede Mundial de Computadores -, cuja arquitetura,
desde o seu início, foi baseada em uma aparente anarquia, cujas teias
criam espaços de sinergia, contribuindo para o crescimento do todo
informacional e, ao mesmo tempo, com condições de resistir a qualquer
ação autoritária por meio da descentralização da Rede.
1. Objetivos e hipóteses
O objetivo geral deste estudo é o de identificar e analisar os processos de aprendizagens
de jovens entre 14 e 18 anos, proporcionados pelos jogos, que dizem
respeito aos modos e maneiras de pensar historicamente, construídos a
partir das estratégias interativas construídas por sujeitos que jogam
jogos digitais com temática em história, especificamente o jogo Age of Empires III.
Este objetivo se desdobra se desdobra em outros norteadores do nosso percurso de investigação:
- Identificar e analisar os usos e apropriações que os sujeitos jogadores fazem dos jogos de computador que simulam acontecimentos históricos no que concerne:- às estratégias de aprendizagem (em geral) e em História utilizadas pelos jogadores no ambiente virtual multijogador a partir de situações de interações hipermidiáticas possibilitadas por esses meios.- às maneiras e modos de pensar historicamente, especificamente aquelas relacionadas à compreensão das relações entre tempo e espaço na história; narrativa histórica, conceitos históricos, imaginação na História e Analogia- aos ambientes que favorecem as interações orientadas à aprendizagem em história a partir de uma perspectiva de construção “coletiva” e interativa do conhecimento histórico.
Conforme
pode ser percebido, não se trata de analisar se o jogo pode ou não
“ensinar” história ou promover a sua aprendizagem. Autores como Gee
(2003) e Johnson (2005) têm afirmado que o que torna os jogos digitais
contemporâneos atraentes é o seu caráter comercial que não retira do
jogo a sua essência, ou seja, o fato dele encerrar-se em si mesmo, ser
livre, não ser real, estar delimitado no tempo e no espaço e significar,
antes de mais nada, não ser produtivo e estar vinculado ao lazer
(Huizinga, 2007)
Devido
a esta aparente emergência dos jogos e da História, acredito ser de
grande relevância compreender as características destes artefatos, as
suas relações com a Historiografia em busca de verossimilhança para
convencer o jogador a consumi-los, bem como analisar os processos
formativos emergentes da relação cada vez mais intensa do jovem com o
jogo.
Procedimentos metodológicos
Em
função da inovação temática, vi a necessidade de uma inserção de cunho
etnográfico, de acordo com os métodos próprios da etnografia, nos
espaços de socialização online utilizados pelos jogadores.
No
entanto, é importante salientar que, dada as características do objeto
de pesquisa, sua novidade nos meios acadêmicos e a dificuldade em
obter os procedimentos metodológicos adequados para dar conta de nosso
fenômeno, acredito que a escolha pela etnografia foi processual, ou
seja, ela foi se configurando como a melhor forma de responder os
problemas propostos. Como vai ser percebido na etapa inicial, de
“emersão”, fui descobrindo a melhor forma de desenvolver o trabalho
através de tateamentos, de tentativas e erros que foram criando
direções para o trabalho.
O
mundo do jogador, apesar de ser parcialmente conhecido por mim, uma
vez que já havia sido jogador de jogos digitais em minha infância, é um
ambiente desconhecido do ponto de vista acadêmico. Trata-se de um
universo cultural distinto daquele conhecido por nós, se considerarmos
como cultura a perspectiva semiótica, em que o homem é um animal
amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura
como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa a
procura do significado Geertz (1978, p. 15)
Ao
definir a etnografia como melhor forma de compreender meu problema de
pesquisa, iniciei uma imersão no ambiente do jogo, nos espaços de
trocas dos jogadores por um longo período, no qual foi necessária uma
compreensão abrangente das características culturais do grupo
pesquisado. De janeiro de 2007 a abril de 2009 naveguei pelo ambiente
do jogo, bem como por seus mecanismos externos de comunicação, cerca de
3 horas diárias, perfazendo mais de 1200 horas de navegação.
Participei de 657 partidas do jogo Age of Empires III , nas
quais meus adversários eram jogadores “reais”. Joguei outras 97 partidas
contra o computador, para aprender as estratégias do jogo.
Salientamos
que o reconhecimento do pesquisador no meio dos jogadores só foi
possível através de sua identificação com as ações dos jogadores no
meio, na perspectiva da alteridade. Ou seja, foi-me necessário aprender
a jogar, desenvolver estratégias e compreender as decodificações
lingüísticas utilizados pelos jogadores. Tive que descer aos detalhes,
além das etiquetas enganadoras, além dos tipos metafísicos, além das
similaridades vazias, para apreender corretamente o caráter essencial
não apenas das várias culturas inscritas, mas também dos vários tipos
de indivíduos dentro de cada cultura (Geertz, 1978, p. 65).
Aliada
a perspectiva etnográfica, fiz uso ainda do paradigma indiciário
proposto por Ginzburg (1989), que se baseia no método de Giovanni
Morelli para descobrir fraudes nas obras de arte. Segundo esta
perspectiva, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e
menos influenciados pelas características da escola a que o pintor
pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das
mãos e dos pés. É necessário um trabalho de detetive, de análise
baseada em indícios imperceptíveis à maioria.
Analiso
os jovens a partir de movimentos quase imperceptíveis, observados a
distância, mesmo sem a presença física do mesmo. Estes movimentos são
ações do jogador, maneiras como ele se relaciona, como se posiciona no
jogo, nas respostas que ele dá a um determinado problema, nas
estratégias que utiliza para viver com os outros sujeitos. Nesta
perspectiva, a produção de um documento, a reação a uma ação do jogador
oponente, a escolha do nickname e a volatividade (ou não) de seus
vínculos aos grupos que se contituem no ambiente do jogo ajudaram-me a
construir uma realidade, ainda que parcial, do cotidiano dos jovens e
suas relações com nosso enfoque teórico.
Considerações finais
Neste
trabalho, foquei uma das dimensões tecnológicas contemporâneas – a meu
ver a que mais se inscreve no cotidiano do jovem atual – os jogos
digitais. Conforme pôde ser percebido, existem dimensões da
aprendizagem que não devem ser desconsideradas pela escola
contemporânea. O jogo digital, há muito, tem sido dito não poder ser
mais considerado brincadeira de criança. Os setores produtivos já têm
se apercebido desse fenômeno e criado cada vez mais condições de
formação por meio das estruturas próprias do jogo, como é o caso da
formação de motoristas, soldados do exército, administradores e até
médicos. O jogo digital, conforme observei, neste trabalho, traz
modificações significativas nas maneiras como o jovem se organiza, se
relaciona com o outro e, principalmente, nas maneiras como aprende e
ensina.
Mas
é importante salientar que não se trata de configurar a tecnologia do
jogo na linguagem escolar – o sucesso do jogo reside na sua abertura,
conforme foi visto no capítulo 2. O jogo digital, quando configurado
para a escola, incorre no erro de abandonar suas dimensões lúdicas e
transformar-se em uma obrigação formativa.
Ao
mesmo tempo, o professor se vê em um problema aparentemente insolúvel:
como vincular a abertura e ludicidade do jogo às sistematizações
próprias da escola? Poderia defender, neste trabalho, que o jogo é a
melhor forma de aprender, no entanto incorreria no erro de
desconsiderar o caráter histórico da escola ou, sendo mais radical, no
grande erro desconsiderar a própria escola como espaço reconhecido de
ensino e aprendizagem.
O
jogo, ao redimensionar as hierarquias dos jogadores, ao vincular a
aprendizagem ao desejo (de jogar e vencer), inscreve o jovem em um
ambiente criticado pela escola – visto que ela defende a construção de
uma sociedade com o mínimo possível dos vícios característicos da
sociedade de consumo (concorrência exacerbada, valorização do objeto em
detrimento do sujeito e práticas voltadas essencialmente para o
consumo imediato das produções midiáticas). Entretanto, penso que a
simples crítica deste modelo não basta à escola para trazer este jovem
para o seu universo formativo – o grande desafio da escola e dos
professores reside no reconhecimento dessa linguagem midiática, na
valorização do lúdico como processo autêntico de aprendizagem e no
reconhecimento das estruturas cognitivas oriundas de tais tecnologias,
para que ela possa criar espaços de diálogos com esse jovem e,
inclusive, apresentar proposições, alternativas ao modelo direcionado
para o individualismo e consumo.
Ao
retomar o problema de pesquisa e analisar todos os dados nos capítulos
anteriores, posso chegar a algumas análises possíveis a respeito do
jovem que joga jogos digitais de história:
Ele
reconhece o passado e direciona suas escolhas pelos jogos que trazem
esta dimensão; no entanto, trata-se de um passado exótico, distante de
sua cultura, cuja singularidade aproxima-o de uma realidade,
aparentemente, fantástica, na qual cavaleiros, clero e a colonização
são, supostamente, tão distantes temporalmente que o jovem os procuram
pela curiosidade com o passado.
Os
jovens apreciam a interatividade e a formação de laços sociais dentro e
fora do jogo. A constituição de clãs, a organização em torno do jogo, a
criação de fóruns de discussão e a ampliação dos diálogos travados
entre eles, para aspetos da vida cotidiana de cada um demonstram que
esse jovem não deseja ficar sozinho frente ao computador, mas constrói
formas de socialização que, em alguns momentos, prescindem das
socializações presenciais clássicas. Não foi meu foco discutir as
implicações psicológicas para tal sociabilidade, no entanto, posso
afirmar que elas existem, porém, em formas e estruturas diferentes
daquelas validadas e valorizadas no ambiente escolar (a socialização
presencial);
Meu
trabalho pode mostrar como o contato com os jogos digitais de história
permite ao jovem desenvolver estratégias de aprendizagem (em geral) e
estratégias de aprendizagens em história. Entretanto, não se tratam de
aprendizagens vinculadas àquelas oferecidas pela escola, aprendizagens
de raciocínios e de ideias históricas que propiciam ao jovem
posicionar-se frente ao mundo, ter iniciativas, dar opiniões, construir
estratégias para resolver problemas no ambiente do jogo e fora dele.
Compreender como esse jovem aprende é um dos grandes desafios da
escola, pois suas estratégias formativas o circunscrevem em uma nova
organização hierárquica, baseda nas aprendizagens em rede, abertas
(Himanen, 2001).
No
caso específico da aprendizagem em história, foi-me possível observar
que o jovem não aprende a história ensinada na escola por meio do jogo,
no entanto ele trava contato com aprendizagens de raciocínios e de
ideias históricas que são fundamentais para a sua compreensão da
historiografia, para a sua posição analítica frente ao passado. Ele
dimensiona o tempo e o vincula à história, não pela associação escolar,
mas pela relação entre tempo e transformação (dentro e fora do jogo);
além disso, o espaço é diretamente relacionado às transformações, sejam
elas na ocupação física ou nas modificações entre as estruturas de
poder entre impérios, com seus conflitos e relações políticas. Isso, ao
meu ver, são maneiras legítimas de compreender a história.
Outro
aspecto a ser considerado é a materialização de suas ações através da
tela do jogo – é uma oportunidade ímpar de visualizar as implicações
das escolhas feitas pelo homem em dados contextos – no caso do jogo, as
escolhas feitas pelo jogador.O ambiente do jogo propicia esta vivência
histórica, pois permite ao jovem visualizar-se como sujeito da
história, como um personagem que modifica o mundo pelos seus atos.
O
jovem aprende ainda a contar histórias, a compreender a dimensão
narrativa de sua ação no jogo. Não é uma compreensão direta – ele não
expõe esta compreensão por meio de discursos ou ações –, esta narrativa
foi percebida nas entrelinhas de minhas observações. E uma construção
discursiva, ele aprende a narrar seus feitos, suas histórias pela
necessidade de contar ao outro como desenvolveu suas estratégias dentro
do jogo. Ele aprende ainda a construir narrativas das histórias do
jogo diferentes da história dita “real” – trata-se de uma narração que é
ímpar, é fruto de sua criação.
Vinculada
à essa dimensão, vê-se emergir a imaginação como força valorizativa do
jogo digital. A imaginação não é aquela voltada para as regras do
jogo, sua estrutura programada, mas é o resultado do que o jovem deseja
construir no ambiente do jogo. Em sua estratégia narrativa, ele pode
narrar o que bem entender, pode construir histórias dentro do jogo
puramente imaginadas, sem vínculos com a realidade, ainda que o jogo
trate de situações históricas reais. Este talvez seja um dos grandes
chamarizes dos jogos digitais (de estratégia com temática em história) –
a força dada ao jogador para imaginar o fim da história, sem seguir
roteiros definidos. A imprevisibilidade é outro aspecto a ser levado em
conta, pois, assim como na história, o jogo é fruto da ação presente
e, como tal, a cada nova visita do jogador (ou do historiador),
obtêm-se resultados diferentes.
Por último, observei ainda que tanto os conceitos quanto a analogia fazem parte das ações do jovem no jogo Age of Empires III.
O jogo fornece informações conceituais que são limitadas pela
estrutura do jogo, no entanto, conforme pôde ser visto, observadas pelo
jogador, seja no momento que ele vincula essas formas de governo às
metrópoles do século XVI, seja na maneira como relata suas estratégias,
demonstrando saber que o seu papel é fundamental para a vitória dentro
do jogo, seja na liderança ilimitada, quando direciona sua
civilização, seja nas organizações criadas por eles quando constroem os
clãs. Já a analogia é percebida a todo o momento, quando ele
desenvolve estratégias no jogo que se relacionam ao que ele sabe a
respeito do presente e do passado, sobretudo nas formas de promover o
crescimento de sua civilização e nas formas de promover o embate entre
adversários.
De
maneira geral, é possível inferir que existem aprendizagens de
raciocínios e de ideias históricas presentes nas ações dos jogadores
observados e entrevistados, no entanto acredito que a grande
contribuição deste trabalho reside em construir pontes, relações entre
essas estratégias de aprendizagem em história e as estratégias de
ensino-aprendizagem em história utilizadas pelos professores no ambiente
escolar.
Conforme
afirmei no início destas considerações, o ponto de partida é, ao meu
ver, o reconhecimento dos jogos digitais como artefatos culturais
legítimos, pelos pais e professores. Saliento que não foi meu foco de
pesquisa responder a esta questão e, caso tentasse, poderia apenas
apresentar especulações. Entretanto, este trabalho deixa em aberto para
os professores a criação das pontes, dos links entre a História que se
ensina na escola e as aprendizagens de raciocínios e de ideias
históricas que se aprende por meio dos jogos. , assim como lança outros
problemas para pesquisadores futuros. Aos pesquisadores a investigação
de problemas levantados por esta pesquisa.
NOTAS:
[1] Estas categorias de jogos serão explicadas no segundo capítulo
[2] ESA (2008) e BBC (2005)
[3] O
clã é a denominação dada a uma comunidade de jogadores que possuem
objetivos comuns: aprender sobre o jogo, criar espaços de socialização
para discutir o jogo, constituir grupos de formação para se aprimorar
no jogo.
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Fonte: http://www.cibersociedad.net/
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